páginas brancas

Tuesday, March 07, 2006

Caminhou quase até ao entardecer, e a vontade dela era voar para dentro dos ninhos de melros que viviam numa árvore perto da sua, pois queria sossego...muito sossego...ela trabalhava tanto, e ela era aquela alcofa grande onde tudo cabia...as batatas, as cenouras, o melão com as pevides, que, sequinhas, até davam para rechear bolos...as cestas da casa já iam estando rotas do tanto que carregavam, do muito de se encherem, do trabalho imenso que davam...ela tinha muitas árvores, muito mato, com quem converssava e discutia...as árvores eram os patriarcas da casa, o mato, a filharada toda misturada, que se confundia na palete das cores que ela lhes atribuía...aqueles tufos que lhes cresciam nas cabeças geniosas e brincalhonas, tinham tantos reflexos...os meninos dos acastanhados davam lhe menos trabalho. eram mais esquivos, fugidios, fácilmente batiam asas para só aparecerem á hora da janta, quando a fome apertava...tinham dono, mas ela queria os livres para a poderem um dia amar...não se pode amar quem nos teve cativeiro toda uma vida... o do cabelo ruivo ,deles todos, era o mais audaz...pouco ou nada se fazia dele...diziam lhe muitas vezes que ela devia ser mais energica com esse, mas ela apertava fortemente os punhos, e gritava bem lá de dentro do seu coração silencioso...que os heróis deviam ter as pontas das suas estrelinhas, um pouco retorcidas, para não poderem seguir a míriade de outas, que a levaria a lugar certo e conhecido... a ela, até lhe agradava que os seus rebentos tivessem ums boms galhozinhos por podar...e depois vinha a menina...a leoa da casa...sempre bracejando contra os irmãos, levantando o punho em forma de protesto, e a dizer, que nela, ninguém mandava...e a mãe, passava lhe longamente os olhos por cima, rindo se recatadamente, dos trabalhos que viriam a ter os possíveis pretendentes á mão daquela sua tempestuosa filhinha...tinham lhe dito há muito, mas mesmo há muitos anos atrás, que,casar e ter meninos, era uma coisa maravilhosa...e ela acreditou, como acreditam todas as mulheres que sentem a vida crescer dentro de si...e depois foi o tudo...o resto...as noites mal passadas, as doenças, a falta de sossego, e o seu cansaço por vezes era tanto, que ela desejava derreter se, como se derrete a manteiga, nos quentes dias de verão...mas ela era feliz, porque tinha tudo, pai, mãe. amante, filhos...ela repetia sempre, todas as noites, depois de se benzer, e de monopear uma rima de Avés Marias e de Pais Nossos, que só tinha a agradecer a deus, porque era muito feliz...mas naquele dia, ao regressar a casa, dera se conta, que , toda a vida, fizera tudo o que esperavam dela...toda a vida abanara a cabeça, toda a vida deixara o mundo decidir por si...toda a vida seguira a tradição, nunca rompera com regras, com normas, e, até, houve uma altura em que a atiraram para os braços de um homem que ela desconhecia...ninguém lhe conhecia o segredo há muito escondido...nunca confiara em ninguém...nunca riscara o nome em parte alguma...e no entanto, por vezes, nos braços do seu amante, por dentro da sua cabeça, ela chamava pelo outro, e tinha com ele o prazer , entregando se aos arremessos desajeitodos do seu companheiro, inventando histórias de encontros com o seu tal outro amor...ela era tão imaculadamente santa por fora...tão condenadamente pecadora por dentro...o que a atormantava ,era aquela culpa, aquele acenar de cabeça forçado, quando queria dizer não...e assim foi crescendo, até áquele dia, em que espreitara fugazmente para o outro lado da rua...e era por isso que ela não ralhava muito, nunca batia, só falava com as mãos, com o coração...a linguagem dos eleitos, pois ela não tinha mágoa, não sentia remorsos, fizera sempre tudo como devia ser...mas naquele dia, qualquer coisa nasceu na sua cabeça, uma coisa que lhe vinha do coração...queria fugir...partir os braços daquele grande cadeirão, onde todos se sentavam, sem se darem conta que ele já começara a ceder com o peso...nessa noite quando se deitou,adormeceu desinquieta, pois sabia que dali para á frente nada mais seria igual...

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