páginas brancas

Sunday, March 05, 2006

Ela tinha quase tudo...ela tinha pai, mãe, amante, filho, céu, nuvens por cima da cabeça...ela era aquela coisa morna e boa, nem muito quente, nem muito fria, a quem se chegavam todos quando se sentiam vazios...e ela carregava aquilo tudo, como se estivesse no meio de uma orquestra, e tudo ouvisse, e tude descernisse até ao último herz...ela era o diapasão certinho e austero que tudo ordenava e condenava...mas hoje ela punha as mãos á cabeça...aquele sorriso , nascido dos cantinhos daquela boca gulosa que a tolhera como se saboreia a mais gulosa das comidas...aquilo não lhe saía da cabeça, e a vontada e o desejo que sentia já por debaixo da sua roupa branca e vaidosa , levava a a repetir sem fim...Spiritus promptus est ,caro autem infirma...e só se lembrava das palavras de Cristo , no Monte das Oliveiras, apelando seus disciplos para fugirem da tentação....ela acabara de saborear de novo aquele gemido frágil, de quem se apronta a cair de um pricipício, esperando sempre cair sobre as suas duas pernas...e se não aparecesse hoje em casa...e se não houvesse mamã para ninguém...e se ela agarrasse aquele bocadinho de fresco renascer...aquele fim de tarde...e voltavam lhe as saudades daquele cheiro inconfundível de um crepúsculo em que se tinha deliberadamente entregue, sem pedir licença a pai,a mãe...e a culpa voltava sempre, implacável, como os ponteiros de um relógio, marchando para a última passada de um final há muito traçado...ela sabia onde encontrá lo, ela sabia lhe o nome, ela tinha o visto há muito nos seus sonhos,ela sabia de onde vinha, as cores que lhe enfeitavam a alma, ela esperava por ele há anos,conhecia lhe a morada, a fama...mas ela sabia que, se cedesse...condenava se a si...ela...o diapasão que afina a malta, que afina a filharada, o dever das suas obrigações...puxou a farta cabeleira para trás, entesou se firmemente na calçada e lembrou se das suas fragilidades, do choro que lhe vinha fácil, do sofá amplo em que se tornara, do colo ternurento de suas mãos que nunca conhecera rival...e de longe, ouvira o apelo dos seus meninos clamando aqueles abraços rosas e azuis, que ela tanto enfeitava de promessas de amor eterno, e pensou que aquele seu coração já tão preenchido, mais nada poderia carregar, a não ser aquele casulo ternurento que construíra ao longo de anos...e as lágrimas corriam lhe pelas faces...ainda tentou , na sua cabecinha, pular a cerca do seu jardim , mas não encontrou forças para o fazer...levou as mãos á cara redonda, os seus dedos tropeçaram no seu nariz longo, ninho de repuxados beijos...já quase esquecidos...ainda esteve para transgredir as normas , saltando num vazio irreflectido, quando, longe, como se de um aviso se tratasse, ouviu soarem lhe as últimas palavras da sua condenação...Sic transit gloria mundi...o seu tempo tivera há muito acabado...o dever chamava a...apressou o passo...

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